As incertezas e disputas em torno da redução de impostos federais a zero pelo Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse) deixaram em aberto o volume total de empresas e receitas abrangidas – e incertezas sobre o impacto fiscal dessa renúncia de tributos. Uma nova Medida Provisória, publicada nesta quarta-feira (21/12), tenta enfrentar a situação.
Partindo do início, o Perse nasceu de um projeto criado ainda no início da pandemia, que deu origem à Lei 14.148/2021. Ela criou medidas para socorrer empresas que dependem do lazer e do turismo, áreas castigadas pela pandemia da Covid-19.
Entre outros benefícios, como descontos para a renegociação de dívidas tributárias, o programa concede alíquota zero de Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ), Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), PIS/Pasep e Cofins para as empresas contempladas pelo programa. O benefício é válido por cinco anos.
O texto recebeu uma série de vetos presidenciais, que acabaram derrubados pelo Senado em março deste ano, quase um ano depois da aprovação do PL pelos parlamentares.
Meses após a entrada em vigor do programa, contribuintes que esbarraram em limitações regulatórias passaram a buscar na Justiça Federal o direito ao benefício e a flexibilização de regras do Fisco. A depender do desfecho jurídico – incerto, já que não há uma tendência consolidada nas decisões –, poderia haver um efeito cascata no setor e ampliar o escopo previsto para o programa.
A lei atribuiu ao Ministério da Economia definir quais as atividades econômicas se enquadram como relativas a eventos e turismo. Em junho, uma portaria listou as atividades em dois grupos: no primeiro, funções intrínsecas ao setor como produtoras de espetáculos, hotéis e casas de festa; e no segundo, 45 atividades que podem se conectar ao setor socorrido de alguma forma, como transporte, bares e restaurantes.
Porém, a regulamentação restringiu que as atividades da segunda lista somente fariam jus ao Perse se, na data da publicação da lei, tivessem cadastro regular como serviço de turismo junto ao governo federal, o chamado Cadastur. O primeiro impasse começa aqui. Para algumas atividades, como restaurantes e lanchonetes, o cadastro é apenas facultativo.
Pelo fato de o Cadastur não ser obrigatório, estabelecimentos que alegam depender do turismo questionam a validade da restrição imposta pelo Ministério da Economia – de modo geral, elas dizem que precisariam de um tempo de transição para se adequar ou que outro critério fosse utilizado para delimitar quem merece benefício. Formalmente, a Lei do Perse não tem esse critério.
Nesta quarta-feira (22/12), com a publicação da MP 1.147/2022, o governo tenta encerrar a discussão. Ela dispõe que a fruição do benefício fiscal da redução de alíquotas de tributos federais para zero deverá basear-se no ato que define os códigos de atividades até que haja nova regulamentação pela Secretaria da Receita Federal.
Desta forma, há expectativa que seja publicado ato do Poder Executivo regulamentando o tema em breve e, possivelmente, alterando a Portaria atualmente vigente.
Disputas na Justiça
Antes da nova MP, ainda não havia um movimento uniforme entre os magistrados, para admitir ou descartar a exigência. Para se ter noção, em um rol de cerca de 400 decisões, há sentenças favoráveis à queda nos Tribunais Regionais Federais (TRFs) da 2ª Região, no Rio de Janeiro; 3ª Região, em São Paulo; da 4ª Região, no Paraná e em Santa Catarina; e da 5ª Região, em Pernambuco. Estes mesmos tribunais têm decisões no sentido oposto, legitimando a restrição regulatória.
A falta de comprovação sobre a atividade turística e dos efeitos da redução do fluxo de viajantes nos negócios é, em alguns casos, usada pelos magistrados para negar o direito ao benefício daqueles sem cadastro antes da data definida – na tentativa de barrar a exploração do programa por empresas fora do público-alvo.
Nesse sentido, em decisão contrária à demanda da locadora de veículos Localiza, a juíza Trícia de Oliveira Lima, da 5ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Minas Gerais (TRF1), diz que “é curioso, e mesmo sintomático” que a empresa só tenha feito a inscrição como prestadora de serviços turísticos em maio deste ano, “muito possivelmente com intuito exclusivo de obter o benefício de alíquota zero”.
Segundo advogados, além da falta de previsão legal, pode ser questionado se esse é um bom parâmetro para socorrer empresas afetadas pela pandemia. Negócios que não têm o cadastro, por não haver exigência, podem depender mais do turismo do que outras que possuíam. Por esse critério, isso não é refletido”, comenta o advogado Arthur Pitman.
Há decisões de segundo grau partindo de diferentes turmas no TRF3, mas a maior parte delas são monocráticas e sobre pedidos de liminar. A resposta definitiva sobre o Cadastur está distante.
No início de novembro, a Receita Federal colocou mais um funil ao benefício tributário: ele só poderia ser aproveitado em relação a receitas e resultados operacionais decorrentes de eventos sociais e culturais ou de serviços turísticos – é o que diz a Instrução Normativa 2.114/2022.
Assim, uma empresa que está dentro da lista de atividades abarcadas, mas que têm receitas de outras atuações, deve apartar esses dois recursos e usufruir do benefício apenas para as receitas envolvidas com o setor. Do contrário, ela pode ser autuada. A medida era questionada por falta de previsão legal, mas o entendimento da Receita foi reforçado com a nova medida.
Essa lógica já é usada pela Receita em outros casos, com o chamado ‘lucro da exploração’, mas isso também foi estabelecido depois, sem a previsão legal de início. Por isso, contribuintes podem não ter apartado as receitas não-operacionais do cálculo do benefício por meses, afirmam especialistas na área tributária.
Pelo menos duas empresas conseguiram liminares afastando os efeitos da instrução. As decisões, proferidas pela Justiça Federal em Porto Alegre e no Rio de Janeiro em dezembro, são as primeiras que se tem notícia envolvendo a delimitação sobre a parte da receita que pode contar o benefício.
Apesar da MP, as discussões nesse campo podem continuar:
A instrução da Receita Federal exclui as empresas optantes pelo Simples Nacional, regime de tributação simplificado direcionado às micro e pequenas empresas. A Receita se apoia na definição de que as empresas optantes “não podem utilizar ou destinar qualquer valor a título de incentivo fiscal” – ela consta na Lei Complementar 123/2006, que criou a ferramenta.
Com isso, empresas do Simples que têm o cadastro turístico questionam a exclusão na Justiça. Novamente aqui, a situação não é uniforme. Há decisões em Minas Gerais, garantindo o benefício a esses contribuintes, enquanto outras em São Paulo negam, por exemplo.
“Cabe ao contribuinte avaliar o que lhe é mais vantajoso e assim, decidir ou não pela permanência no Simples Nacional. O que não é permitido, é a ‘criação’ de um sistema misto a fim de possibilitar a fruição dos benefícios do Simples, somado a outros aplicáveis a regime distinto”, afirmou a juíza Diana Brunstein, da 7ª Vara Cível Federal de São Paulo (TRF3), ao negar o pedido de uma agência de viagens.
Nas decisões que negam a concessão para empresas do Simples, o argumento de que haveria uma violação à isonomia tributária costuma ser descartado com o entendimento que o Simples já é, ele próprio, diferenciado. Então não há que se falar em desequilíbrio.
Até a data de início do benefício gera discussão. A instrução da Receita esclareceu que o benefício vale a partir da queda do veto do dispositivo, em março. Para o juiz Leonardo Vietri Alves de Godoi, da 1ª Vara Federal de Barueri (TRF3), que decidiu em favor da dispensa do Cadastur para uma empresa de agenciamento de espaços para publicidade, o programa valeria a partir de maio de 2021, quando a lei foi publicada.
A instrução não respondia outra dúvida dos contribuintes: com a isenção, ainda há o direito ao aproveitamento de créditos do PIS e da Cofins, a que têm direito em algumas transações, como compras de insumos? A resposta veio com a MP publicada em dezembro, que impossibilita a tomada de créditos para os beneficiários do Perse – pela lógica, seria possível supor que antes haveria a possibilidade.
Além disso, ele aponta que a MP pode não ser convertida em lei, o que poderia gerar discussões sobre os seus efeitos no período em que ficou vigente.
Esses se tornaram mais alguns pontos de instabilidade sobre o benefício, tanto para contribuintes quanto para o Fisco.
Renúncia Fiscal
A lei do Perse diz que, além dos recursos do Tesouro Nacional, podem ser fontes para assegurar as medidas estabelecidas valores arrecadados com loterias administradas pela Caixa, dotação orçamentária específica e “outras fontes de recursos”.
Porém, com as disputas, não está claro quanto o Perse poderá custar no final das contas nem como ele será financiado. O custo do programa foi calculado entre as medidas adicionais na estimativa de arrecadação do Projeto de Lei Orçamentária de 2023, conforme o relatório de receita do deputado Hélio Leite (União-PA).
A estimativa é que as renúncias custem R$ 600,9 milhões, se forem seguidas as regras da instrução da Receita e delimitação feita pela Economia.
Em outra linha, há ainda o acréscimo de outros R$ 505 milhões com a inclusão de isenções do PIS e da Cofins às companhias aéreas comerciais – a participação do setor no Perse foi incluída na Medida Provisória 1.147/2022, publicada nesta quarta-feira (21/12).
Na previsão orçamentária do Turismo, há uma reserva destinada a emendas de relator-geral para atender ao Perse (e também à lei complementar que estabelece ações emergenciais de socorro à cultura). O montante total dessas emendas para a pasta é de R$ 700,2 milhões, sendo metade para cada.
Além das isenções fiscais, há ainda o abatimento de dívidas. Sobre as renegociações de dívidas, há números que dimensionam o impacto da medida. De acordo com dados da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) cedidos à reportagem, desde julho de 2021 foram deferidos 21,4 mil parcelamentos ligados ao programa. No período, foram parcelados mais de R$ 38 bilhões em dívidas. Aplicados os descontos previstos no programa, porém, a cifra cai para R$ 18,36 bilhões.
Outro custo potencial decorre da indenização a empresas que tiveram redução de pelo 50% no faturamento entre 2019 e 2020 por conta de despesas com salários de empregados durante a pandemia. Essa destinação, que não é obrigatória, tem teto de R$ 2,5 bilhões em gastos pela União.
Sem definir nem estimar o total de atividades e empresas abarcadas, a previsibilidade tanto para contribuintes quanto para o cenário fiscal é opaca.
Fonte: Repórter Letícia Paiva – Jota